Rios secos, calor extremo e aulas remotas: mudanças climáticas afetam mais de 436 mil estudantes na Amazônia, diz Unicef
25/11/2025
(Foto: Reprodução) Secas e calor extremo afetam educação na Amazônia
Um vídeo mostra dois professores em uma pequena embarcação, conhecida popularmente como "catraia", quebrando ao passar por um braço do rio Jutaí, em Porto de Moz, no oeste do Pará - (assista acima). Os dois tentavam chegar em uma escola, mas o rio, abaixo do nível, enfrentava a seca severa que atingiu a região em outubro deste ano. Este é o mesmo cenário que fez com que 436 mil estudantes ficassem sem aulas por causa de eventos climáticos na Amazônia em 2024, principalmente secas, segundo dados levantados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Professores e especialistas, ouvidos pelo g1, relatam como as mudanças climáticas são sentidas no cotidiano escolar; cheio de obstáculos, com rios secos e calor extremo afetando diretamente o aprendizado e comprometendo o acesso à educação na região.
A cidade de Porto de Moz, na mesorregião conhecida como "Baixo Xingu", tem 40,5 mil habitantes e distante quase 1.000 km de Belém. A seca vai além da sala de aula: prejudica a locomoção de estudantes, danifica motores de embarcações que fazem o transporte escolar pelos rios, interrompe aulas e deixa comunidades isoladas, segundo os moradores. O problema também afeta os fornecimentos de água e serviços essenciais.
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No caso do Pará, as queimadas, alteração nas chuvas e a elevação da temperatura criaram um cenário que especialistas consideram já irreversível no curto prazo. O Unicef também aponta que, somente na região amazônica "mais de 1.700 escolas e mais de 760 centros de saúde foram fechados ou ficaram inacessíveis devido aos baixos níveis de água em 2024".
A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), que terminou em Belém no último sábado (22), teve programações paralelas que discutiram como o clima afeta as crianças e adolescentes, principalmente no Brasil. Além disso, crianças e adolescentes atuaram em ações simbólicas pedindo mais proteção ambiental e políticas climáticas voltadas para a infância.
"A educação ainda apareceu de forma tímida na COP, mas tem ganhado espaço nas agendas. A expectativa é que haja um avanço mais sólido que traga o tema para o centro da mesa", afirmou Danillo Moura, especialista em clima e meio ambiente do Unicef Brasil.
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Nesta reportagem você vai ler:
Secas de rio afetam Porto de Moz
Educação sob calor extremo
Impactos não afetam só a Amazônia
Tema da educação na COP
🚣🏻♀️ Secas de rio afetam Porto de Moz
Caminho até escola no município de Porto de Moz
Arquivo pessoal
Em Porto de Moz, professores relatam que a seca impacta a rotina escolar. As crianças dependem de pequenas embarcações para chegar às aulas, mas a falta de água nos rios torna trechos intrafegáveis durante o verão amazônico, geralmente entre julho e novembro.
Jeremias Lobato, professor e coordenador da Escola Municipal Seguidores de Cristo, estava no vídeo sobre o barco que teve o motor quebrado ao passar por um rio seco. Ele explica que é comum os motores sofrerem danos:
“As peças são danificadas devido à seca. É consequência direta desse problema climático que estamos vivendo”, afirma.
A escola fica em um território quilombola formado por 12 comunidades, onde vivem cerca de 600 famílias. Segundo Jeremias, a comunidade também monitora e combate desmatamento e queimadas, temas discutidos com os estudantes: “queremos formar cidadãos conscientes, responsáveis e que cuidem da nossa casa comum”, diz.
Os problemas da seca também afetam outras áreas. Em 2024, a seca provocou falta de água potável, prejudicou a agricultura e dificultou a navegação, um dos principais meios de transporte e escoamento de produtos. De acordo com o Serviço Geológico do Brasil (SGB), no dia 15 de outubro de 2024, o Rio Xingu atingiu o menor nível já registrado para o período: 237 centímetros.
A professora Leiliane Gonçalves, da Escola São João Batista, do Rio Maruá, também em Porto de Moz contou que devido à seca do rio Xingu, foi necessária uma mudança no calendário escolar dos alunos. "Nós precisamos lidar com a situação para manter a educação".
"Optamos por aulas remotas, porque as dificuldades enfrentadas pelos alunos e pelos professores que moram às margens do rio Xingu são muito grandes até chegar à escola. Primeiro, caminhamos por até 20 minutos para alcançar a primeira embarcação. Depois, remamos até o barco, que é o transporte escolar, e só então seguimos o trajeto rumo à escola", conta Leiliane.
Professora Leiliane com os alunos no percurso da margem até o transporte escolar.
Arquivo pessoal
Ainda segundo a professora, as maiores dificuldades enfrentadas por eles são no período do verão amazônico, em que as ondas de calor são muito fortes. As escolas, segundo ela, não têm ventilação suficiente, nem climatização, o que "dificulta o ensino e o aprendizado dos alunos".
"Muitas vezes nós, professores, precisamos retirar os alunos de sala e levá-los para debaixo das árvores para respirar um ar mais fresco, porque dentro da escola é muito quente. Às vezes, a gente chega a passar mal, inclusive os alunos, com muitas dores de cabeça, nós professores também. Isso acaba atrapalhando o ensino e a aprendizagem", relata a professora.
Gleicieni Lima, técnica da Secretaria de Educação de Porto Moz, Conselheira e Articuladora do Selo Unicef no município, explica que o território é dividido em cinco grandes regiões: Jaurucu, Guajará, Alto Xingu, Baixo Xingu e Acarai. Segundo ela, quando há pouca chuva, todas sofrem bastante com os impactos.
Ela explica também que igarapés e o rio do Guajará ficam tomados por "tapumes", no Alto Xingu, onde há aumento dos blocos de areia e as praias ficam cobertas de lama. Já o Jaurucu, região de terra firme, assim como o Acarai, enfrentam uma seca tão intensa que o acesso às casas se torna bastante difícil. O Baixo Xingu, por sua vez, sofre com a entrada das águas do rio Amazonas, uma situação que, segundo ela, piorou muito após a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.
A Prefeitura de Porto de Moz informou que "tem adotado ações para reduzir os impactos da seca e do calor intenso nas comunidades ribeirinhas e no acesso à educação". Entre as medidas informadas pela prefeitura estão:
Instalação de 32 sistemas de tratamento de água e a perfuração de poços em áreas de terra firme;
Construção de mais de 1 km de pontes e abertura de canais para melhorar a navegação, inclusive de barcos escolares;
Previsão de 49 unidades do programa "Salta-Z", da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) que faz tratamento de água em pequenas comunidades, para 2026.
Na educação, a prefeitura disse que o município possui 90 escolas rurais e que mais de 50 unidades foram entregues ou revitalizadas na gestão anterior, algumas com energia 24h e climatização. Outras seis já foram inauguradas pela gestão atual, com mais três previstas até 2026, incluindo um Centro de Educação Técnica.
A prefeitura também informou que reforçou ações de assistência social, como distribuição de cestas básicas para famílias afetadas pela estiagem, e capacitação de brigadistas para prevenção de queimadas.
🌡️ Educação sob calor extremo
Crianças de escola de educação infantil em Porto de Moz, no Pará
Arquivo pessoal
Para Danillo Moura, especialista do Unicef Brasil e que também atuou como membro do comitê de negociação do Unicef na COP 30, o "impacto das mudanças climáticas sobre as crianças, de forma geral, e sobre a educação, de forma específica, é ainda maior em comunidades mais vulneráveis".
Ele explica que, ao observar os efeitos da seca histórica registrada em 2024, "fica claro que as populações mais afetadas são comunidades isoladas, como as ribeirinhas, indígenas, quilombolas e tradicionais, que já têm acesso mais difícil e tiveram o direito à educação especialmente prejudicado".
“Nessas comunidades, muitas vezes é do rio que depende a ida e a volta da escola, ou até mesmo a chegada do professor para dar aula. Quando o rio não oferece condições de navegação por causa da seca, não é só a educação que fica comprometida, mas uma série de outros direitos fundamentais”, afirma Moura.
Ainda de acordo com o especialista, os danos à educação na Amazônia "resultam da destruição da floresta associada às mudanças climáticas".
“As queimadas intensas, mudanças nos padrões de chuva, secas duradouras e o aumento da temperatura média criam um ciclo vicioso que afeta diretamente a vida de crianças e adolescentes”, explica.
O impacto, segundo ele, é ainda mais forte nas crianças porque:
são fisiologicamente mais vulneráveis ao calor extremo,
regulam menos a temperatura corporal,
e respiram, comem e bebem mais por unidade de massa corporal, ficando mais expostas à contaminação de ar, água e alimentos.
Além das doenças que tendem a aumentar, como infecções respiratórias e diarreias, o calor intenso dentro das escolas prejudica a capacidade de concentração. Moura afirma que estudos mostram queda significativa no raciocínio e na memorização quando a temperatura ultrapassa 32 ºC a 35 ºC.
“Não é que a aula simplesmente deixa de ocorrer. Muitas vezes ela acontece, mas o aprendizado é limitado pelo desconforto térmico e pela infraestrutura inadequada”, diz.
🌎 Impactos não afetam só a Amazônia
A situação no Pará reflete um cenário global. Segundo o estudo "Aprendizagem Interrompida: Panorama Global das Interrupções Escolares Relacionadas ao Clima em 2024", do Unicef, mais de 242 milhões de crianças e adolescentes tiveram aulas interrompidas por emergências climáticas em 2024 no mundo. Outros dados apontados:
1,17 milhão de estudantes ficaram sem aulas por causa de eventos climáticos em 2024 no Brasil;
a média nacional de dias letivos perdidos passou de 5 em 2023 para 10 em 2024;
77% delas não tinham plano de emergência;
90% nunca realizaram simulações de risco;
57,6% dos alunos do ensino médio estudam em áreas com baixa resiliência a enchentes;
8 milhões frequentam escolas vulneráveis à seca no Brasil.
Como os dados foram levantados?
De acordo com o UNICEF, os eventos climáticos pelo mundo foram identificados a partir do Banco de Dados de Eventos de Emergência (EMDAT) e ao arquivo do Projeto de Capacidades de Avaliação (ACAPS).
Foram 181 eventos climáticos registrados entre 1º de janeiro de 2024 e 31 de dezembro de 2024. Parte desses eventos causaram interrupções nas aulas, apontadas em relatórios do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), do ReliefWeb e de outros veículos de comunicação.
A pesquisa identificou 85 países e 119 eventos climáticos extremos que levaram a interrupções nas aulas.
📗 Tema da educação na COP
Cúpula das Infâncias reúne cerca de 400 crianças na COP
A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30) realizada em Belém em novembro deste ano, foi marcada pela forte participação popular e por uma série de programações paralelas que mobilizaram movimentos sociais, coletivos e moradores da cidade.
Entre os momentos que ganharam destaque esteve a atuação de crianças e adolescentes, que organizaram ações simbólicas e fizeram pedidos por mais proteção ambiental e políticas climáticas voltadas para a infância.
Durante a Cúpula das Infâncias, na Universidade Federal do Pará (UFPA), como programação paralela à COP, cerca de 400 crianças e adolescentes de diversas regiões apresentaram uma carta em que relatam como vivem os efeitos da crise climática no cotidiano.
Vindos de bairros quentes, ilhas, comunidades ribeirinhas, territórios indígenas e quilombolas, eles descreveram salas de aula sem ventilação, ruas empoeiradas, falta de sombra e dias tão quentes que provocam dor de cabeça, tontura e até sensação de desmaio.
No documento, afirmaram que decidiram escrever a carta para que “o mundo escutasse” o que sentem no corpo e enfrentam todos os dias, em um cenário onde brincar, estudar e até circular pelas comunidades se torna cada vez mais difícil diante do calor extremo.
Moura explica que sobre as COPs, a educação não é um dos temas centrais, já que as conferências têm como foco principal a redução de emissões, a transferência de tecnologia e o financiamento climático. Ainda assim, ele destaca que o tema aparece de diferentes maneiras, sobretudo por meio da agenda conhecida como ACE, a Action for Community Empowerment, que reúne iniciativas voltadas à educação ambiental e climática dentro do processo de negociação.
Segundo ele, há um esforço recente para fortalecer essa pauta. Um dos resultados esperados da COP 30 foi o avanço no Global Goal on Adaptation (DGA), para definir indicadores globais a fim de monitorar a adaptação nos próximos anos.
"Na COP do ano passado, já houve uma tentativa de garantir que a educação estivesse entre esses indicadores, considerando tanto a adaptação do setor educacional quanto a necessidade de preparar sistemas de ensino para impactos climáticos", relata o especialista.
O que diz o governo
Questionada sobre estudantes que ficaram sem aulas em escolas afetadas por eventos de secas e enchentes, a Secretaria de Estado de Educação (Seduc) informou que "o Sistema de Organização Modular de Ensino (Some) e o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei) são modalidades desenvolvidas para garantir atendimento escolar em áreas remotas e em comunidades indígenas do Pará" e que ambos "estão presentes em 22 Diretorias Regionais de Educação (DREs), alcançando 81 escolas, sendo 69 unidades do Some e 12 do Somei, atendendo aproximadamente 24.421 mil estudantes".
"A Secretaria oferta educação mediada por tecnologia por meio do Centro de Mídias da Educação Paraense (CEMEP), que leva o ensino médio a regiões rurais, ribeirinhas e de difícil acesso. O CEMEP abrange 54 municípios, atendendo 354 localidades, com 775 turmas de ensino médio distribuídas entre os turnos da manhã, tarde e noite, beneficiando mais de 13 mil estudantes em todo o estado", afirma a nota.
Ainda na nota, a Seduc disse que também "atua no apoio ao transporte escolar, disponibilizando ônibus escolares em diversos municípios, assegurando o acesso dos estudantes às unidades de ensino".
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